sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Inversa Gemini


-Anúbis, acorde, Anúbis!

Sobre as areias, gélidas ao toque da madrugada, um garoto arregalou os olhos enquanto despertava. Enxergou o céu que parecia imenso e decadente ao seu redor e por um instante pôde finalmente observar a cadência das estrelas mais insignificantes.
Anúbis era o nome que haviam lhe dado às margens do largo Nilo. Nome este cujo peso e fardo foram propositalmente feitos para que combinasse com o destino de um Deus encarregado por atravessar as almas até as profundezas do inferno. O garoto, não era mais do que um simples escravo que mantinha as mãos ocupadas ao único talento que se preocuparam em lhe instigar: remar e remar, atravessar e atravessar pessoas carregadas do sangue nobre: Descendentes e semelhantes do faraó.
Por fim, balbuciando ao finalmente abandonar os devaneios, cansou de sentir a carne estagnada e pressionada contra a atmosfera do céu frígido e os grãos ásperos das dunas frente à paisagem relutante das miraculosas pirâmides e templos.

-Acordou, finalmente, Anúbis! Já está quase na hora de iniciar o seu trabalho. O que estava fazendo dormindo aqui fora?
-Sim, sim, Vovô. Eu me deitei aqui de fora da tenda pela noite, tentei observar o céu, acabei caindo no sono. Pelos Deuses!
-Algo perturba o seu coração. Então me diga o que é. Talvez eu possa...
-Eu refleti muito sobre o que é este destino que cai sobre nós, vovô. Não me conformo em servir assim alguém que nem ao menos se preocupa em mostrar pra nós o seu próprio rosto...
-Anúbis... A vida é realmente conturbada, meu querido. Nascemos escravos e morremos ainda escravos, por aqui. Mas algum dia, você poderá encontrar respostas muito melhores do que as minhas. O livro da vida é uma escritura com incontáveis dualidades. A vida é uma dualidade.

O sol já despontava no horizonte, carmesim como uma folha de Lycoris, manchando de sangue vivo toda a tela de afresco que se tornava o céu. Anúbis retraiu-se. Simplesmente voltou a face para baixo, desatou os nós que prendiam sua balsa à margem e remou rumo ao outro lado do resplandecente Nilo. Executou sua tarefa de cabeça baixa, sequer levantou a face por um instante. Sempre contemplava sua dor daquela forma: Faceta baixada rente a seu próprio eu refletido no sombrio espelho de águas.
“Se você quer encontrar o verdadeiro sentido de existir, deve saber que a resposta estará sempre na dualidade de tudo. Somente a ela é quem você deve culpar e não culpar simultaneamente, porque ao mesmo tempo em que o dual assume-se culpado, ainda tem a pureza da inocência e a inconstância da verdade”. Ecoou a voz do velho na mente de Anúbis, mantida nesta última frase que lhe falara antes que partisse à tez da outra margem.
Quando o menino voltou-se para a região das tendas, percebeu a destruição. Havia inúmeros corpos espalhados sem pudor. O sangue escaldando pela areia granulada deu-lhe uma visão panorâmica da carnificina e do desespero. Sua maior agonia brotou naquele momento, emergindo do mar de calmaria como o caule da Flor-de-Lótus selvagem. Marejados de lágrimas, seus olhos deram lugar às chamas do rancor, o sal das lágrimas secou-lhe a pele com o teor do desejo de desforra.
A guarda do faraó havia dizimado todos os habitantes daquelas moradas pacíficas. As tendas perderam a vida em meio aos incêndios e destroços.
Naquele dia tardio, o garoto Anúbis partiu em busca da dualidade de tudo. Vingar-se-ia.






- Zahra, Desperte! Zahra, Zahra!

Zahra era uma garota tão linda como uma flor de crisântemo resplandecendo em um campo de areia. Única, frágil e só.
Cheios de maquilagem escura como nanquim virgem, seus olhos se abriram em meio às paredes do tabernáculo. Era sob aquele teto arenoso que ela dormia junto com sua família.
Seus olhos sempre se fixavam nas mãos do velho pai e pareciam se encantar com o movimento peristáltico, às vezes arredondado, enquanto ele fazia por terminar o desenho de cada hieróglifo. E ela acompanhava de perto, com grande afeição os traços caligráficos em que ele transcrevia para os papiros.
E recentemente o escriba tentava descobrir em muitos e muitos rolos de pergaminhos diferentes, qual seria o significado daqueles terríveis sonhos que atormentavam a cabeça de sua filha. Não havia um dia se quer desde que o último ciclo da lua começara a recender pelos céus em que aquela pobre criatura não fosse atormentada pelas temíveis miragens dos sonhos. Castigo divino? O que ele pudera ter feito contra a sagrada imagem do Faraó, para que descesse tal tormenta dos céus? Como homem sempre cumprira papel justo e altruísta.
Finalmente, com muita labuta o homem encontrou um rolo de pergaminho que lhe trouxe alívio imediato. Nada mais era do que uma série de inscrições de proteção sagrada, cântico dos Deuses, contra-maldições.
Como um velho ancião, um velho profeta, o pincel de barbas cansadas fez por escorregar negra tinta pela margem da pele, provisoriamente tatuando-a.

-Os Deuses hão de nos proteger e abençoar, Zahra.

Então, em um outro dia tão próximo daquele, a tatuagem foi em si o estigma da desgraça. Vendo as marcas proibidas na pele da garota, o Faraó ordenou que a menina deveria ser sacrificada em mérito dos grandes Deuses do céu. A flor do crisântemo seria despetalada, podada e atirada na fogueira dos puros.
Zahra, Zahra... Era isto que o seu nome significava: uma flor casta.

-Papai, eu estou com medo... Papai!
-Zahra, eu... – Chorou o homem.

Entre uma fila de grandes soldados e guerreiros do Faraó, a menina passou, segurando uma rama de planta perfumada. Os incensos em pó nas piras faziam-se recender pelo ambiente. Um sacerdote estendeu os braços para a menina e a colocou deitada sobre o leito do seu sacrifício: uma mesa de pedra.
Pessoas com o rosto coberto por máscaras ritualísticas rodeavam o local e iniciavam um cântico. Zahra já havia se conformado. Seu corpo seria agora dos Deuses. Talvez fosse por isto que eles a chamavam nos sonhos.
Os cânticos pararam e as ladainhas tão concentradas que pareciam nunca acabar, tornaram-se uma exclamação da boca daqueles homens.
Um gato Sphynx negro saltou sobre a bancada de pedra e ronronou alto para todos. Parecia feroz com aquilo que estava acontecendo. Com alvoroço todos começaram a reverenciar a garota ali parada. “Viva o sangue da sagrada Bastet”. Anunciaram a uma só voz.

-Qual é o seu desejo, menina Bastet? – Perguntou com humildade o jovem Faraó.
-O meu sonho é alcançar o verdadeiro amor no coração das pessoas.

Não era mais Zahra. A Bastet encarnada decidiu partir em busca do verdadeiro amor.







Não foi mágico o momento feito pelo simples fato de que se encontraram, mas sim pelo que falaram entre si. Anúbis e Bastet consumiram o amor um entre o corpo do outro, tomados por uma dança acima dos homens e dos Deuses. O amor que sentiram soterrou as dunas.
Anúbis deixara sua pureza ali, afogando-se com as areias movediças. O corpo de Bastet, tomado, também teve a pureza sugada através dos lábios do jovem balseiro.
O Prazer afetou um canto da mente de Anúbis que o levava a alguns raros choques de memória.

“A primeira discípula da dualidade é a fé” falou o avô dentro da balsa cinzenta que fluía frente ao azulado rio Nilo, abduzido pelo ocre das ventanias de areia e pelas pirâmides avulsas do horizonte. Anúbis não entendera o que significara esta frase até o dia em que já sozinho no mundo resolveu enfrentar de peito aberto o caustico caminho desértico. Perdera a fé nos Deuses que o protegiam, perdeu a fé nos seus passos e na sua carne corroída pelo calor. Por fim, perdeu a fé em si mesmo. Mas foi da falta de fé que ele descobriu a garra para os novos impulsos e pelo desejo de vida que lhe invadia o karma á começar pelo estômago. A primeira pista do ambíguo estava desvendada, mas a sua sede por vingança era maior.

“A segunda pupila da dualidade é a guerra”. A frieza dos olhos do velho compenetrou-lhe a alma. A jangada de madeira escura parecia muito mais profunda naquele momento. Quando chegou á civilização mais próxima do árido deserto onde quase morrera, fora amparado por algumas famílias de camponeses. Eles o levaram para um grande galpão cheio de grossas nervuras que se conectavam até o teto. O chão era apinhado de sacarias com mantimentos para longos dias e os tapumes estavam cobertos pelo desgaste da areia carcomida pelo tempo.
Anúbis lavou os cabelos escuros e castigados pelo sol. O tempo havia se passado ligeiramente, e os fios cheios de negrume agora lhe atingiam a altura do nariz. Mergulhou na tina de madeira mofada e emergiu renascido, renascido para suportar a pergunta que o jovem filho da família camponesa o fez: “Você está preparado para participar de uma guerra?”.
Ganhou uma cimitarra com sinuosas curvas e fortes inscrições entalhadas na lâmina. Mas abandonou tudo que era da guerra no campo da própria guerra. ao finalmente ter encontrado mais uma chave do ambíguo, partiu.
Os homens constroem armas para se fortificarem e para conquistarem mais e mais barreiras de poder. Mas estes pensamentos pertencem verdadeiramente aos donos do domínio. Os soldados que morrem e que sacrificam seu sangue na batalha lutam porque simplesmente almejam um mundo abarrotado de paz. A guerra, pela maioria, era por paz. Sangue era derramado para que sangue parasse de se derramar. Ai estava o nó do paradoxo.
“Eu realmente não posso entender o que faz alguém matar seu semelhante”, pensava o garoto.

“Você poderá descobrir ainda que a dor é a terceira seguidora da ambigüidade”. Naquela expressão, o velho estava sério. As espessas barbas ofuscavam sua face.
Quando começou a correr da guerra pelas dunas, uma seta trespassou-lhe a coxa direita e entregando-se ao templo sagrado da dilaceração ele experimentou o suntuoso prazer contido na auto-carnificina. Anúbis percebeu que apesar de horrenda, era a dor a necessidade humana principal para a evolução e para o aprendizado.

“E ainda que a quarta é o amor contido nas pessoas”. Ao acordar do seu desmaio em pleno deserto, Anúbis era tratado diretamente na ferida por uma bela moça prestes a se fazer mulher. Em meio aos apagões de consciência de que ele se recordava, ela sorria e o acalentava.
“Você foi trazido para cá com os prisioneiros. Está tudo bem agora. Mas pagará depois.”. “Qual o seu nome?”, perguntou o balseiro. “Pode me chamar de Bastet”. O amor surgiu ali naquele momento, e como uma hidra de inúmeras cabeças, devorou-lhes o coração.
Bastet e Anúbis entregaram-se em nome do amor entre cômodos calados, e mal iluminados pelos candeeiros. As areias sagradas banhadas pelo grandioso lábaro foram testemunhas de tudo. Estrelas ensurdeciam-se com os sussurros das bocas entreabertas e pareciam até mesmo perderem um pouco de seu brilho, extinguirem-se.

A consciência de Anúbis voltou à tona. Estavam novamente sob o tapete granuloso do Egito. O Deus-Cão e a Deusa-Gato unificados. Despontou-se na sua mente novamente: “E ainda que a quarta é o amor contido nas pessoas”. O amor era a única ambigüidade que não compreendera em seus conformes, e sua plenitude não lhe trouxe nenhuma razão. “Execute sua vingança, você finalmente encontrou a prova viva da ambigüidade”.
E com um punhal dourado, Bastet foi por ele degolada sem pesar, tendo a barca da lua minguante pronta para levá-la aos confins do inferno, maculados pela traição. Para ela o amor que buscava tornou-se uma ambigüidade. Para ele, a ambigüidade que buscava estava contida no amor.
O afeto só pode ser ambíguo quando se mata por ele, O amor e o ódio são dois gêmeos inversos que caminham de mãos dadas. Basta que soltem os dedos entrelaçados para que o homem escolha qual deles melhor lhe convém.

Anúbis sentiu-se corroído pela tristeza. A única pessoa que o despertara daquele profundo e tenebroso vale de lamúrias fora morta por suas próprias mãos. Sendo assim ele descobriu a última das dualidades. A dualidade que seu avô não mencionara:
Sua inocência foi a encarregada de trazer uma morte limpa. A sua pureza fora a sua lâmina que permitira a execução da morte naquele dia. E ela sim também era a ambigüidade mais capaz de todas.

Abraçou-se ao corpo da amada após um enorme gole de veneno. Morreu dolorosamente e com lentidão. Nada muito diferente do destino daqueles que partem em busca da absoluta verdade.